Acontece na noite desta sexta-feira, dia 18 de novembro, na Câmara Municipal de Assis, a entrega do Diploma de Mérito ‘Zumbi do Palmares’. Os holofotes estarão voltados para a professora Célia Regina Pedro, homenageada pela Câmara Municipal e pelo Zimbauê, Instituto do Negro de Assis. A comenda é destinada a personalidades negras que contribuem com o seu trabalho para o fim do preconceito, da desigualdade e do racismo em Assis, e se mantém firme nessa luta para acabar, de vez, com tudo isso.
À mestra com carinho!
Aqueles dias no colégio. De contar contos e roer unhas se foram.
Mas, na minha cabeça. Eu sei que eles irão continuar a viver sem parar.
Mas, como você agradece alguém. Que tirou seu giz de cera para perfumar?
Não é fácil, mas tentarei.
Se você quisesse o céu, eu escreveria nele.
Ao mestre, com carinho.
Chegou a hora. E enquanto eu parto.
Saberei que estou deixando meu melhor amigo.
Um amigo que me mostrou do certo ao errado. Do fraco para o forte.
Isso é muito para aprender.
O que eu posso lhe dar em troca? Se você quisesse a lua eu tentaria começar.
Mas eu prefiro dar meu coração a você.
Ao mestre, com amor.
(Trechos da música Ao Mestre com Carinho)
Seu Eurídice Gomes Pedro, ferroviário, e dona Eunice Campos Pedro, costureira, nas décadas 1950/60, formavam uma bela dupla e escolheram Assis para viver e constituir uma família. O casal sabia perfeitamente o que era o racismo, o que era o preconceito e a discriminação. Com isso, sabiam também, é claro, das dificuldades que encontrariam no caminhar por causa da cor da sua pele. Negra!
Mas, não se abatiam, pelo contrário, era a força que os impulsionava. Sabiam que era preciso estar sempre em pé, firmes e fortes. Traziam dentro de si uma força, uma luz e uma sabedoria que dizia que era preciso avançar. Sabiam que tinham uma missão a cumprir nesse mundo. Sabiam que era preciso mostrar para essa gente, para aqueles que ainda não sabiam, que todo negro e negra que estão nesse mundo vieram aqui para lutar, com sangue ou não. Vieram aqui nesse mundo para vencer com dignidade e serem respeitados e vistos como um igual, custe o que custar.
Pois bem, a família morou em alguns bairros aqui em Assis e os filhos foram chegando. Tiveram quatro, três homens: Eurides Gomes Pedro; João Luiz Pedro e Fábio Gomes Pedro e uma mulher, Célia Regina Pedro, que nasceu em fevereiro de 1964.
O início da caminhada
A infância da Célia Pedro foi um pouco, digamos, diferente das outras meninas do bairro, quando se pensa em brincadeiras de criança. A guria não ligava muito para bonecas, brincar de casinha e essas coisas típicas das meninas da época. Ela gostava mesmo era de jogar bola com os irmãos, fazer e soltar pipas, papagaios, rodar pião, entre outras. Os irmãos a respeitavam, a protegiam nessas brincadeiras de rua e os laços familiares iam se fortalecendo.
Quando chegou a época de ir para a escola cursar o primário, a menina foi matriculada na E.E. Prof.ª Cleophania Galvão Da Silva, na Vila Operária.
“- Eu gostava de ir pra escola, não faltava nunca. A minha mãe sempre dizia que seu maior sonho era ser professora. Ela não conseguiu porque o pai, com medo, não deixou. Ela se realizou
sendo catequista na Paróquia Nossa Senhora das Dores. Minha mãe reunia os filhos ao seu redor e contava histórias, lia e explicava coisas pra nós, como se fosse uma professora de verdade. Eu adorava aquilo! Creio que, mesmo sem saber, foi aí que o dom para ser professora começou a germinar em mim“.
Por outro lado, nesse mesmo período, as dificuldades também eram grandes. Então, um certo dia seu Eurídice Pedro caminhando pela rua encontrou revistas e livros ele os levou pra casa para os filhos verem e, percebeu, que eles gostaram. Dona Eunice Pedro lia e comentava para todos. Isso era como ganhar um presente!
Logo em seguida as dificuldades foram embora, aí seu Eurídice Pedro continuou na mesma toada. Ou seja, só que agora, ele comprava livros, dicionários e enciclopédias para os filhos.
“– Nesse período nós morávamos na Vila dos Operários e a Fepasa marcou para sempre a minha vida. Meu pai era artífice, nome da função de eletricista, todos os dias eu o via sair para o trabalho vestido num macacão cinza, com o emblema da Fepasa nos bolsos. O nosso relógio eram os apitos: às 6h30 era o primeiro, alertando os funcionários; às 7h00 era a
entrada; às 11h00 hora do almoço e às 16h30 a saída. No último apito acabava a brincadeira de rua, todos iam pra casa. Meu pai vinha limpando as mãos sujas de graça. Chegava em casa, tirava o macacão, tomava um banho e se preparava para a refeição. Como era bom aquilo!”
A preparação
Bem, essa consciência e a percepção de que era preciso estudar e ter um bom trabalho, vem de berço na família Pedro. A avó de Célia Pedro, dona Maria de Lurdes Campos, mãe da dona Eunice Pedro tinha uma visão à frente do seu tempo. Tanto que ela sabia da importância em manter os costumes e as raízes da ancestralidade africana falavam alto dentro dela, pois comunicava com os netos através da oralidade que é o fio que tece as tramas da teia da sabedoria africana e dá continuidade a uma história enunciada por várias vozes.
“– Minha avó tinha o costume de reunir todos os seus netos e contar várias
histórias. Falava da importância da nossa cor, contava história dos seus pais, avós, a
nossa origem, as dificuldades e, principalmente, nos questionava e nos instruía sobre
as heranças deixadas pela escravidão. Também contava histórias de almas penadas,
mula sem cabeça, Saci Pererê, Neguinho do Pastoreio e causas do bem e do mal. E,
claro, não podia faltar a sonoridade. A música estava presente no cotidiano familiar, e
todos eles ouviam Tim Maia, Bem Jor, Bebeto, sambas e os black americanos.”
Esses ensinamentos da avó foram fundamentais para que Célia Pedro começasse a perceber o que era o racismo, o preconceito e a discriminação na relação social, principalmente na escola.
No primário teve uma desavença com uma aluna que implicava com a sua trança, que fazia piadinhas e puxava. Até que um dia ela perdeu a paciência. Adivinhe o que aconteceu? Terminou o curso em outra escola.
Com 15 anos, ela cursava o 1º ano do ensino médio na E.E. Ernani Rodrigues, na Vila Xavier. Ela teve de ouvir da mãe de uma aluna amiga, com “boas intenções”, mas sem perceber o racismo embutido, a seguinte declaração:
“Você não é preta, você é moreninha! Você até que é bonita, bonitinha! Você é cheirosa! Você é de boa família!”.
Isso deixou bem claro pra Célia Pedro como o negro e a negra são tratados nesse país. Paralelo a isso, dona Maria de Lurdes Campos, que nesse período já morava em São Paulo, não cansava de orientar os netos dizendo da importância de continuar estudando e a necessidade da mudança para uma cidade grande. Dizia ela que lá as oportunidades seriam maiores para um negro e negra vencerem.
Tentativa em São Paulo
Assim, terminado o ensino médio aqui em Assis, e depois de várias tentativas de conseguir um trabalho, ela seguiu os passos dos irmãos Eurides e João Luiz, e desembarcou na capital aos 18 anos, confiante e cheia de esperança.
Mas, a vida não foi fácil, como ela imaginava. Sem experiência profissional, durante um ano ela tentou de tudo, e nada. Por outro lado, a convivência com os parentes lhe reafirmava cada vez mais a questão da negritude. Afinal, ela frequentava ambientes conquistados por negros e negras na capital paulista. Isso lhe deu uma bagagem excepcional na sua caminhada.
Paralelo a isso, dona Eunice Pedro pedia encarecidamente para que ela voltasse a Assis e fosse estudar, fazer uma faculdade. Ela voltou! Entretanto, trabalhar era preciso. Não tendo alternativa ela foi ser caixa em um supermercado. Trabalhou com afinco, mas sabia que aquilo não era para ela. Lembrava das palavras da avó, do esforço dos seus pais e de que estudar era preciso pra vencer.
No caminho certo
Foram seis meses trabalhando como caixa até que veio o vestibular em História, na Unesp, em 1988. Quando ela viu o seu nome na lista de aprovados, lembrou-se de todo o seu histórico de vida e viu ali a melhor oportunidade até então surgida, e que lutaria com unhas e dentes para vencer mais essa batalha.
Dito e feito!
Com o diploma na mão, agora ela era uma historiadora e era o que a sua mãe não havia conseguido. Ser uma professora! Assim, ela começou a dar aulas na E.E. Prof. Ernani Rodrigues e na E.E. Prof. Maria de Lourdes Aranha de Assis Pacheco, em 1994. Depois vieram a E.E. José Gonçalves de Mendonça e Escola Sistema Padrão, ambas em Maracaí. Paralelo a isso, também deu aulas pelo Sesi, na Usina Maracaí, onde ficou por dois anos.
Em 2000, Célia Pedro prestou e passou em concurso para efetivar professores. Passou! Então, ela foi dar aulas de História e Geografia, na E.E. José Gonçalves de Mendonça, em Maracaí.
Em 2014, ela passou a integrar o Programa de Ensino Integral na E.E. Dona Carolina Francini Burali, cuja proposta consiste na consolidação do protagonismo estudantil e na formação de jovens autônomos, competentes e solidários que no futuro estejam aptos a desenvolver uma carreira acadêmica. Neste contexto, a professora Célia Pedro se destacou por sua atuação em sala de aula e pelo desenvolvimento de projetos individuais e coletivos. Fazer com que os alunos desenvolvam projetos, nos quais prevaleçam o protagonismo estudantil. Entre eles estão:
Na Disciplina Eletiva:
1 – "Deu Blush na História”, primeira edição realizado em parceria com o Curso de Fotografia da Fema, com a professora Carmem Portilho e duração de um semestre.
Uma eletiva composta apenas de meninas com o objeto de fortalecer o empoderamento
feminino entre as alunas através do estudo e apropriação da história de mulheres que
deixaram a sua marca na história, como por exemplo: Frida Kahlo, Dandara, Carolina
de Jesus, Malala Yousafzai, Audrey Hepburn, Glória Maria, entre outras.
2- “Eletiva Carolina Masterchef com três edições” esse foi um projeto inovador com ênfase no estudo da História e da Linguagens, desenvolvido em parceria com a Kelsiane Manfio sobre “A Alimentação Na História”. Foram marcantes as parcerias estabelecidas no decorrer deste trabalho e as diversas aprendizagens oportunizadas aos seus alunos.
3- “Pesquisa Patrimonial”, orientação a pesquisa de estudantes selecionados para a realização do levantamento histórico sobre a trajetória de vida da patronesse que dá nome à escola, Dona Carolina Francini Burali. Esse trabalho envolveu atividades como entrevistas, análise documentos e de acervo fotográfico familiar.
4- " Mankala” – Pesquisa e análise sobre Cultura Africana apresentadas aos
alunos do 6° ano, sobre a Étnico Matemática, em 2019, com o objetivo de desconstruir a
ideia de ausência de complexidade da cultura africana provenientes do senso comum.
Esse projeto foi desenvolvido em parceria com o PIBID da Unesp de Assis.
* Projetos de área em parceria com a Coordenação de Humanas, Fernanda Fazano:
1 – Fotografia – Concurso Consciência Negra. Primeiro lugar da categoria 2022.
2- Projeto Negro é Lindo de 2021: A proposta do projeto foi estimular a valorização da ancestralidade entre os alunos negros a partir do estudo sobre Cultura Africana e combater as práticas racistas presentes em nossa sociedade.
Com isso, em 2019, Célia Pedro ganhou, da Câmara Municipal de Assis, o diploma de Professora Padrão do Ano. Agora, em 2020, ela foi a escolhida para receber do Zimbauê, Instituto do Negro de Assis, o Diploma de Mérito Zumbi dos Palmares.
Por conta de tudo isso que você leu acima, essa é nossa homenageada em 2022, com todos os méritos. Nós, da Comunidade Negra de Assis, nos curvamos e agradecemos pela significativa contribuição, que nos enche de orgulho.
Ah, e tem mais, Célia Pedro tem uma filha de 14 anos, a Maria Clara de Campos Nascimento. A guria está construindo a sua história com todo apoio da mãe. E promete!
Creio que, como todos nós, ela também deve estar pensando: “Com uma mãe assim, felicidade maior nesse mundo não há! Não é mesmo?”
Imagem: Divulgação
O autor Niva Miguel é jornalista, Mestre em Educação e autor do livro “Além da Notícia” [email protected]