Não é novidade para ninguém o sofrimento que o povo brasileiro vem passando nesses últimos tempos, todos os dias têm coisas ruins sendo mostradas em todas as mídias.
Barbaridades e mais barbaridades: crianças sendo fuziladas indo pra escola, coisas repugnantes. Na linha de frente dessa barbárie está, mais uma vez, o povo negro. A carne mais barata do mercado continua sendo a carne negra!
Mas, tem um porém, por mais que queiram, por mais que tentem, por mais que teimem, por mais…
O que eles não sabem é que o nosso povo, o povo negro desse país, não cai.
Não cai porque mesmo com essa monstruosidade medíocre a nós imposta, cada um de nós carrega dentro de si a alegria, a dignidade, a vontade de viver e o orgulho de ter erguido esse país no braço.
É daí que vem a força que nos mantêm em pé custe o que custar.
Essa força chama-se luta e resistência!
E é isso que corre em nossas veias e, isso, ninguém será capaz de tirar de nós!
Eles também não sabem que o nosso lema é o seguinte:
“Sim, sou um negro de cor.
Meu irmão de minha cor.
O que te peço é luta sim.
Luta mais.
Que a luta está no fim.
Cada negro que for.
Mais um negro virá.
Para lutar.
Com sangue ou não.
Com uma canção(poesia).
Também se luta irmão.
Lutar por nós…”
Wilson Simonal
Se você não acredita no que acabou de ler, então leia um pouquinho mais e veja a história da Célia Regina de Oliveira, que adotou o pseudônimo de ‘Felina’.
A sua caminhada ilustra o que está descrito acima.
Ela é uma sertanejana de 53 anos, que escolheu Assis para morar.
A mulher já escreveu quatro livros de poesias e relatos; foi homenageada na Câmara Municipal de Assis com Moção de Aplausos; já deu entrevistas em rádios, participou de Feiras Literárias, Roda de Conversa sobre o filme “Coração da Loucura”; é compositora da Banda Loko na Boa, formada por estagiários do curso de Psicologia da Unesp e pacientes da Saúde Mental CAPS 2; fez por três anos Oficina de Circo, com o professor Maurício Pereira, é ritmista da bateria da Escola de Samba Unidos da Vila Operária, entre outras atividades.
Agora, ela é a vencedora do Diploma de Mérito Zumbi dos Palmares de 2019, prêmio outorgado pelo Zimbauê, Instituto do Negro de Assis, para personalidades negras que contribuem com o seu trabalho para o fim do preconceito, da desigualdade e do racismo em Assis e se mantêm firmes nessa luta para acabar, de vez, com tudo isso.
O prêmio será entregue dia 21, às 19h30, em solenidade na Câmara Municipal de Assis.
Claro, todos nós estamos pra lá de contentes com a escolha.
A premiada faz jus com todas as honras ao diploma.
Mas, para chegar até aqui não foi nada fácil.
A caminhada foi dura, cheia de altos e baixos, mas sempre permeada por sonhos, fantasias, amor verdadeiro no coração e visões do mundo que só aquelas pessoas com a sensibilidade aguçada e escolhidas por Deus conseguem enxergar.
Ela é assim!
Em Sertaneja
Felina nasceu na Região Metropolitana de Londrina, em Sertaneja, em 1966.
Ela é a caçula dos cinco filhos da família dos Oliveira.
Seu pai, seu Manoel José de Oliveira, tinha uma venda e trabalhava nela para ganhar o sustento da família.
Sua mãe, dona Nairdes Oliveira de Oliveira, ajudava trabalhando na roça.
Às vezes, Felina ajudava o pai na parte da manhã, depois ia para a escola.
Também tinha toda a atenção dos irmãos mais velhos, irmã caçula todo mundo sabe como é, é o xodó da família.
Entretanto, Felina carregava em si algo de diferente de todas as demais crianças daquela idade, e não era compreendida por ninguém.
Segundo eles, a menina vivia no mundo da lua.
A menina não batia bem da cabeça.
A menina era louca!
Na escola, ela era motivo de gozação das coleguinhas que repetiam o mantra: essa menina não bate bem da cabeça.
Coitada da mãe dela.
Ela não é certa!
Com isso, ela era uma criança solitária também na escola.
– Eu era uma criança sonhadora. Eu me deitava no chão e ficava olhando para o céu, ficava olhando para as nuvens e sonhando. Sonhava com coisas belas. Eu gostava disso, mas ninguém entendia, relembra.
Porém, no meio dessa escuridão existia uma luz, que era a sua professora da primeira série, donaTernina.
Vendo toda aquela gozação para cima da Felina, tentando amenizar a situação e como que profetizando, sempre lhe dizia:
– Não ligue para o que eles estão te dizendo, escute por um ouvido e solte pelo outro.
Você nasceu para ser grande.
Você veio ao mundo para dar alegria ao próximo.
Você está aqui para vencer.
Um dia, lá na frente, você vai escrever coisas bonitas.
Você vai escrever coisas que as pessoas vão gostar.
Você vai escrever coisas que vão ajudar muita gente.
Tome gosto pela leitura e escreva sempre.
E você verá que o que eu estou te dizendo agora será verdade amanhã.
De fato, Felina tomou gosto pela leitura e nunca se esqueceu dessas palavras.
Na verdade, diz ela que essas falas da professora conduziram sua vida e a marcaram para sempre.
Daí, a grande consideração e respeito pela mestra.
Chegando em Assis
Pois bem, sua irmã mais velha, Maria Elaine de Oliveira, havia se casado e mudado para a cidade de Assis.
A outra irmã, Maria Marlene de Oliveira, também veio morar na cidade logo depois.
E, por fim, ela chegou mais tarde, sem nenhuma pretensão.
Veio para ajudar as irmãs.
Acontece que, em Assis, a menina começou a ficar mais estranha do que já era e a primeira grande crise chegou.
A guria ouvia vozes que diziam para ela fazer coisas esquisitas do tipo: por que você não se mata? Você precisa morrer! Fuja da sua casa!
Então, levaram a moleca para um pastor resolver o problema; nada.
Depois em um Centro Espírita, também nada.
Por fim, acabou indo em um médico, clínico geral, que receitou sabe-se lá o quê, mas conseguiu acalmá-la.
Em seguida, teve alta e a vida seguiu.
Nesse período, a família toda já havia se mudado para Assis, e escolheram a Vila Nova Florínea para morar.
Acontece que, ao redor da moradia, existiam dois terrenos repletos de eucaliptos, e seu Manoel era quem cuidava.
Esses eram os locais preferidos da Felina.
Era ali que ela se deitava e ficava a olhar para o céu e a contemplar as nuvens, como na infância lá em Sertaneja.
Era ali que ela escrevia e recitava em voz alta para si mesma alguns poemas que ela escrevia.
Era ali o seu mundo!
Entretanto, a solidão era sua maior companheira, isso a entristecia, mas não a desanimava.
Os raros momentos de felicidades aconteciam quando as “amiguinhas”, enamoradas, pediam para ela escrever poesias, cartas de amor e coisas do gênero para os seus escolhidos.
Isso ela fazia com alegria e de peito aberto, tentando ajudar o próximo.
Mas, ela também sabia que a recíproca não era verdadeira.
Em São Paulo
Pois bem, de repente, um novo caminho apareceu a sua frente quando sua irmã Maria Marlene de Oliveira, que havia se casado e tido uma filha, a chamou para ajudá-la.
E lá se foi Felina, nos seus 17 anos, para São Paulo, no bairro Bela Vista.
Contudo, aquilo era uma novidade para ela, morar na capital, no 24° andar de um prédio, aquele barulho e, principalmente, uma saudade sem fim da família que havia ficado aqui em Assis, a atormentava.
Tudo isso foi demais.
Então, um belo dia ela surtou.
A vizinha não sabendo de nada, achou que o problema era droga.
Por isso, chamou a polícia.
Resultado: ela foi internada!
Depois de passar por diferentes exames aqui, ali e acolá veio o diagnóstico: Esquizofrenia Paranoica. Começava aí seu maior sofrimento!
– Lá, eles me davam remédios muito fortes, tipo sossega leão.
Eu não conseguia entender nada, nada mesmo do que estava acontecendo.
Quando eles diminuíam um pouco os remédios eu tinha vontade de escrever, mas não tinha onde.
Então, eu comecei a escrever na parede, tirando a tinta com a unha o que deixava meu dedo sangrando.
Minha sorte começou a mudar quando chegou o médico residente, Dr. Luiz, que percebeu que eu ficava mais calma quando escrevia.
Ele ordenou para me darem giz de cera e papel.
E eu escrevia!
Dessa forma, as coisas foram melhorando.
Assim, ela passava um tempo internada e um período com a sua irmã.
Até que, um dia, ela viu no jornal O Estado de São Paulo um concurso de poesia denominado Mário de Andrade.
Se encheu de confiança e coragem, e resolveu se inscrever e participar.
No ato da inscrição, o atendente lhe disse que ela tinha que escolher um pseudônimo para poder se inscrever.
Ela não sabia o que fazer, não vinha na sua mente nenhum nome.
Depois de observá-la por alguns instantes, ele tomou a dianteira e sugeriu Felina.
Ela gostou!
Feliz da vida, Felina passou a sonhar como nos tempos de criança.
Sonhava e, às vezes, se lembrava da fala da professora: “um dia, lá na frente, você vai escrever coisas bonitas. Você vai escrever coisas que as pessoas vão gostar”. Isso, a enchia mais ainda de coragem e esperança.
Porém, as mesmas nuvens que ela sempre via no céu e lhe traziam enormes alegrias e esperanças, de repente se transformaram em nuvens carrancudas, anunciando que uma tempestade estava por vir.
E não demorou muito, um temporal desabou.
Justamente no dia da apresentação da sua poesia no tão esperado concurso, ela foi internada novamente.
Ainda não havia chegado a sua hora!
Depois de algum tempo e com a sua melhora, ela disse adeus às suas internações e a São Paulo também.
De volta a Assis e morando, desta vez, na Prudenciana, começou uma nova etapa da sua vida.
O céu se abrindo novamente
Aqui em Assis, ela passou a frequentar o Centro de Atenção Psicossocial de Assis, CAPS, e sua vida começou a mudar, para melhor, é claro.
No entanto, no começo ela confessa que não gostou muito, não entendia muito bem em que aquilo poderia ajudá-la.
Mas com o tempo as coisas começaram a se engrenar e ficou ainda melhor quando ela começou a ter sessões individuais com a psicóloga Denise Teixeira.
Aí, uma luz, quero dizer, um holofote se acendeu quando ela iniciou a sua participação na “Oficina de Jornal” e conheceu a estagiária do curso de Psicologia da Unesp, Universidade Estadual Paulista, campus Assis, Fernanda Dau.
Um belo dia, a estagiária observou os escritos da Felina e sentiu que tinha algo de especial ali.
Ela percebeu que dali poderia sair um livro.
Argumentou com Felina e passaram a discutir um projeto para poderem publicar os escritos.
A cada conversa as coisas iam se acertando.
A ideia inicial de Felina de que não era possível editar e publicar um livro foi sendo vencida pelo otimismo.
Quanto à falta de dinheiro, dariam um jeito.
Mas, a força maior vinha dos pensamentos de Felina que se reportavam à infância e à professora Ternina: “um dia, lá na frente, você vai escrever coisas bonitas. Você vai escrever coisas que as pessoas vão gostar”.
Com isso, ela sentia que a sua hora estava chegando.
Ela sentia que nada poderia atrapalhar dessa vez.
Ela só não sabia que os deuses haviam reservado um grande presente para ela.
Assim, em dezembro de 2009, o grande e importante presente foi entregue para ela, na Universidade Estadual Paulista, durante o Encontro de Saúde Mental, “Saúde na Roda: Que Cenário Estamos Pintando?”.
Lá estava ela toda orgulhosa e fazendo o lançamento do seu primeiro livro de poesias: “Momento de Lucidez: Um Olhar Para Fora de Mim”, com o projeto gráfico elaborado por ela mesma.
Foi um sucesso!
No ano seguinte, ela publicou seu segundo livro também de poesias e relatos, histórias ouvidas dentro do CAPS, intitulado: “Pequenas Histórias Grandes Emoções”. Depois veio: “Uma Mente Com Dois Lados Diferentes”, poesias e, em 2017, ela lançou: “Trajetória”.
Paralelo a tudo isso, ela também passou a frequentar as reuniões do Zimbauê, Instituto do Negro de Assis, no Galpão Cultural.
Com isso, ela ampliou ainda mais a sua consciência do que é ser uma mulher negra nesse país e ser marginalizada há todo momento.
Agora, ela também é militante e luta pela causa com os seus escritos.
Segundo Felina, essas reuniões têm contribuído e muito com a sua autoestima, com o seu papel como mulher nessa sociedade preconceituosa e machista e, principalmente, com a necessidade de ser engajada e juntar forças para a comunidade negra poder avançar.
– Na minha cabeça eu estou ajudando a mim mesma e pessoas que gostam do meu trabalho. Algumas me veem como exemplo. Isso, me deixa orgulhosa.
Quando releio alguma coisa que escrevi, penso comigo que não sou tão burra assim.
Quanto ao fato de ser uma mulher negra, já sofri muito por causa disso.
Mas hoje, depois das reuniões no Zimbauê, consigo dizer, com orgulho, quem sou eu e a que vim.
Estou mais forte.
Quando saio das reuniões carrego comigo tudo que ouvi por lá.
Hoje, eu sei que sou como uma moeda, de um lado eu mostro meu rosto e do outro o valor que eu tenho!, diz Felina com um sorriso nos lábios e um ar de vencedora.
Por conta de tudo isso, essa é a nossa homenageada em 2019, com todos os méritos.
Nós, da Comunidade Negra de Assis, nos curvamos e agradecemos pelas significativas contribuições, que nos enchem de orgulho.
Ah, e tem mais uma coisa, Felina é mãe de três filhos: a Manoella Oliveira da Silva, o Gabriel Oliveira da Silva e o Pedro Henrique de Oliveira.
Em 2007, Pedro, então com 13 anos de idade, resolveu ir para a praia e se divertir nas ondas do mar.
Ele deu um mergulho e nunca mais voltou.
O ocorrido levou Felina a nocaute mais uma vez, mas não por muito tempo.
Depois do luto, ela resolveu transformar essa tristeza em alegria.
Ela decidiu que faria dessa dor, seu motivo de inspiração, de coragem para seguir em frente.
E assim foi feito!
Hoje, Manoella está prestes a se formar em Direito, pela Fema.
Gabriel já se formou e hoje é um professor de Educação Física.
Isso deixa qualquer mãe transbordando de alegria e orgulho.
Então, imagina a Felina nesse momento!
Manoella e Gabriel, cá entre nós:
Com uma mãe assim, felicidade maior nesse mundo não há!
Não é mesmo!
Niva Miguel é jornalista e professor,
membro do Instituto Zimbauê,
autor do livro “Além da Notícia”.
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