FALA, MÁRCIO SANTILLI: “A fila da esperança”

Não há nada a comemorar. Chegamos ao patamar de quatro mil mortos por dia pela pandemia no Brasil. Nosso país dispõe de cientistas, instituições de pesquisa, laboratórios e outros recursos necessários para desenvolver vacinas próprias contra o novo coronavírus, com qualidade e quantidade capazes de imunizar os brasileiros e outros povos. Mas não houve governo, nem investimentos, prevalecendo a imprudência, a omissão e o negacionismo.

Vale ressalvar a iniciativa do governo paulista de viabilizar a parceria entre o Instituto Butantã e o laboratório chinês que desenvolveu a Coronavac, para produzi-la no Brasil. Com ela estão sendo imunizados, até agora, 81% dos brasileiros vacinados.

A vacina AstraZeneca/Oxford, única aposta do Ministério da Saúde, vem atrasando suas entregas. O governo federal não levou a sério a função essencial da vacinação e rejeitou acordos para garantir insumos. A irresponsabilidade letal impõe ritmo lento à imunização.

O quarto ministro da saúde mostra-se melhor que o terceiro e vem tentando acelerar o processo, o que já é um alento. Ele defende o uso de máscaras e o isolamento social, medidas recomendadas pela ciência que contrariam o discurso e a atitude presidenciais. Vamos torcer para que a falta de insumos não impeça a maior celeridade na vacinação.

É importante registrar que o número de brasileiros que pretendem se vacinar vem crescendo. Eram 73% em dezembro, 79% em janeiro e 84% no final de março, segundo o Datafolha. O negacionismo criminoso, produtor de enxurradas de notícias falsas, está sendo derrotado pela vontade de viver do povo brasileiro, apesar do gigantesco preço pago e ainda por pagar, e das hordas de irresponsáveis que promovem aglomerações.

Não faltam episódios grotescos e revoltantes de autoridades que roubam vacinas ou furam a fila de vacinação. Nesta semana, caiu o comandante da PM no DF, que furou a fila, mesmo sabendo que a sua vez não tardaria, já que os profissionais de segurança pública estão entre as prioridades.

A fila de prioridades é indispensável para orientar a vacinação de forma justa e eficaz. Porém a imprevidência do governo federal no provimento de vacinas contamina a fila com o risco da exclusão. Por exemplo, coveiros e agentes funerários não foram priorizados. Com ritmo lento, furar a fila revela um egoísmo brutal.

Mas a fila é a fila da esperança! Basta ver a perseverança dos idosos, enfileirados nas calçadas sob sol e chuva, esperando pela sua vez nos postos do SUS. E constatar a alegria que toma conta dos seus semblantes quando o ato se consuma: mais e mais heróis, candidatos à sobrevivência. A cada vacina, uma nova vitória!

A esperança também é a tônica nas longas filas de drive thru. É cena rara entre remediados, mas exemplar do sentido de urgência que aflige toda a sociedade. Claro que essa fila específica se dissiparia primeiro se e quando vacinas forem vendidas nas farmácias. Mas o objetivo deveria ser liquidar com todas as filas, provendo-se vacinas para todos.

O grande ausente na fila é o presidente. Até foi anunciada a sua imunização no sábado passado, conforme sua idade. Imagino que familiares e assessores chegaram a convencê-lo, senão da necessidade, da oportunidade política de se vacinar. Mas, afinal, ele não deu o braço a… injetar. Vai ver que só tinha a Coronavac disponível. O jacaré perdeu a oportunidade de parecer gente.

Ainda temos muita luta pela frente para vencer essa pandemia. Muitos anos serão necessários para tratar as suas sequelas, atenuar dolorosas perdas e heranças. Porém, a duras penas, a hegemonia da ignorância está sendo quebrada. Vamos remover o entulho e avançar!

fala, márcio santilli

O AUTOR – Márcio Santilli é filósofo, sócio-fundador do Instituto Socioambiental (ISA). Autor do livro Subvertendo a gramática e outras crônicas socioambientais. Deputado federal pelo PMDB (1983-1987) e presidente da Funai de 1995 a 1996.

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