Geraldilene, minha operária do lar, chega tarde porque panfletava na rodoviária para denunciar o menosprezo do Ministério da Saúde pela vacina contra a Covid e, paralelamente, fazer campanha eleitoral contra o Bolso-Ignaro, como ela chama o presidente. Para minha surpresa, entra e me dá um abraço apertado. Não me contenho e provoco:
– Ué, traindo a classe? Abraçando explorador?
– Minha solidariedade, patrão. Sinto muito.
– Não me chame de patrão. Entre nós não há esse distanciamento.
– A consciência pesa?
– Pare de bobagens. Diga logo o que houve? Por quê o abraço?
– Estou solidária com vocês, jornalistas. O povo é muito ingrato. A mídia faz a maior campanha da história para desmoralizar um ex-presidente, e esse povinho socialista insensível ainda mantém o cara disparado nas pesquisas eleitorais.
A desgraçada refinou a ironia. E continua a me provocar:
– Bem que a sua imprensa podia pressionar o Congresso para que revogue esse povo e institua outro, mais adequado aos seus noticiários.
Retruco, também com intenção de provocar:
– Você pode ironizar, criticar, mas a imprensa é o quarto poder.
A gargalhada vem estridente.
– Quarto poder?
Ela rola no sofá, enquanto finge sufocar a gargalhada com a mão na boca. Me encara e repete, acentuando as palavras:
– Quarto poder? Não seria no quarto com o poder? Assim definimos melhor a sua imprensa.
E dá outra gargalhada, curtindo a própria provocação. Ri, que chega às lágrimas. Tenho de responder à provocação, mas, pelo jeito, hoje vai ser difícil. Ela está atacada. Finjo que ignoro e entro no banheiro. De lá, ouço-a cantar a música do Caetano:
– “Você diz a verdade, e a verdade é seu dom de iludir.”
Canta alto, só para garantir que eu a ouça. Um dia, ainda baixo o centralismo democrático para impor disciplina política e respeito à autoridade nesta casa.
Júlio Cezar Garcia é jornalista e um dos fundadores do Jornal da Segunda