Um dia, na minha adolescência, meu pai chegou desolado.
– Morreu o doutor Nazareth, o médico dos pobres.
Naquele dia, à hora do enterro, a notícia já havia se espalhado pela cidade. Uma horda desceu das periferias rumo ao cemitério, na ânsia estranha que pobre tem de ser agradecido a quem lhes dá respeito.
Devastaram jardins de residências e praças públicas, de onde arrancaram flores para levá-las, envoltas em afeto e dor, à despedida do médico.
Em torno do túmulo, maçons, médicos, advogados e políticos – que o jornal da cidade chamava de próceres – gastaram prosa em latim e verso para homenagear o amigo.
A plebe ignara esperou.
Quando os ternos de linho inglês e sapatos de cromo alemão se ausentaram, chinelinhos vão-de-dedo, alpercatas e algodãozinho ralo começaram a depositar flores na campa.
Uma criança trazia uma rosa de plástico, desbotada, provavelmente furtada ali mesmo.
Ao estender a mão para depositar a homenagem, foi impedida por uma mulher gorda, que suava e chorava:
– De plástico, não.
Com gesto brando, tirou a flor artificial da menina e deu-lhe uma dália, grande, plena das cores e dores daquele dia.
A criança buscou o melhor lugar para deixar sua flor em destaque.
Muito tempo se passou.
Tenho lido que a importação de produtos da China cresceu muito e que, com a proximidade de Finados, as flores de plástico predominam nessas aquisições. Outrora, só as naturais testemunhavam sinceridade.
Bobagens, superadas pelo poder da globalização.
Nestes tempos de autoridades que humilham, com seus desprezos federais, as dores e carências de famílias, tempos de utopias ultrajadas, de risos plastificados, soa velho, velho de doer, o episódio da flor de plástico no enterro do médico Adalberto de Assis Nazareth.
É Finados.
Meu abraço apertado aos que levam flores para enfeitar a amizade com os que já se foram.
Júlio Cezar Garcia é jornalista e um dos fundadores do Jornal da Segunda