A afirmação de que criança é um ser cordial fica prejudicada quando resgatamos os apelidos no nosso grupo de moleques. Bola Sete, porque era preto, como a bola de bilhar. Mutuca, porque tinha pelos salientes na testa, como a mosca de picada doída. Saracura, pelas pernas esqueléticas e longas, como o passarinho do brejo. E outros mais…
O amigo mais admirado era Bola Sete. A mãe havia sido cozinheira no seminário católico da cidade e, com isso, garantira a ele estudo rigoroso com os padres. No ginásio, era o melhor da classe em língua portuguesa, matemática, ciências, história, geografia… No seminário, havia lido livros que nenhum de nós conhecia. Citava de memória frases do Velho e do Novo Testamento que nos encantavam. A preferida era: “Há um tempo oportuno a cada propósito debaixo do Sol. Tempo de plantar, tempo de colher, tempo de rir, tempo de chorar…”
Apesar de ter perdido meia perna sob as rodas de um trem quando fazia estripulias na estação ferroviária da cidadezinha, o que o obrigava a usar uma muleta tosca de madeira, era alegre, espirituoso, generosamente superior.
Aos domingos, nosso bando ia à matinê do cinema paroquial. O ingresso era distribuído aos sábados, na aula de catecismo.
Quem faltasse ao catecismo teria de pagar ingresso no domingo. Naquele, todos iríamos pagar, já que na véspera havíamos ido nadar na Água Nova, na zona rural.
A matinê começava às três da tarde. Às duas e meia, passei na casa dele. Era uma casinha de madeira, pequena. Ele fez um sinal para eu esperar à porta, enquanto pedia dinheiro ao pai. O velho dizia que não tinha. Bola não desistia. O pai irritou-se e respondeu com veemência:
– Pensa que estou mentindo?
Houve segundos de silêncio. Meu amigo, com o toque-toque da muleta nas tábuas do piso, aproximou-se do velho e lhe deu um abraço.
– Não, pai. Você não mente – disse.
– Mas, você está puto comigo por eu não ter o dinheiro.
– Não, estou só triste – respondeu.
Eu ficaria triste também se não fosse à matinê. Mas a tristeza dele era de outra natureza. Pleno de afeto e resignação, disse ao velho:
– Deve ser muito difícil para um pai negar algo que o filho pede.
Continuaram abraçados, enquanto eu engolia a seco um travo na garganta.
Tanto tempo depois, posso afirmar que alguns amigos me ajudaram a olhar a vida com mais generosidade. E que, neste Dia dos Pais, quando a carestia agrava a dificuldade de muitos em suprir necessidades básicas da família, falta um Bola Sete por aí, para aliviar-lhes o peito.
Júlio Cezar Garcia é jornalista e um dos fundadores do Jornal da Segunda