As passeatas contra o governo, exibindo cartazes e faixas imensas com mensagens do tipo “Fora Bolsonaro!” levam-me a resgatar um episódio de muitas décadas atrás, em São Paulo. Mesmo sob os temores da Ditadura Militar, havia manifestações, na maioria das vezes, organizadas por estudantes universitários de esquerda, ou, até mesmo, por grupos e instituições de direita.
O resgate que faço reúne os dois grupos. O da direita, representado pela mais obscurantista instituição católica, a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), fundada em 1960 pelo intelectual católico Plínio Correia de Oliveira, e, o da esquerda, o Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito do Largo São Francisco.
Criada para combater a “expansão do comunismo” no Brasil e na América Latina, a TFP saía às ruas com grandes estandartes e o brasão com a imagem de um leão rampante, ou seja, erguido nas patas traseiras. Havia uma frase em latim no brasão: “Increpa illos dure”, algo como repreenda-os, recrimine-os duramente, extraída da Bíblia, na epístola de Paulo a Tito.
Plínio exigia que os membros da TFP usassem ternos, ou, no mínimo, camisas de mangas longas para não expor o corpo. E via o demônio comunista onde houvesse um oposicionista que denunciasse as torturas praticadas sob proteção do regime militar.
Eu era colaborador do jornal Movimento, um semanário de oposição à Ditadura. Certo dia, o editor Roldão Arruda mandou-me cobrir uma manifestação no Largo São Francisco, em frente à Faculdade. Quando cheguei, a TFP recolhia assinaturas contra o projeto de lei do então senador Nelson Carneiro, que propunha a aprovação do divórcio pelo Congresso Nacional.
De repente, um grande cordão de estudantes de direito saiu da faculdade e invadiu a praça dançando roda em torno dos meninos de terno e gravata da TFP. Os sacrílegos baderneiros giravam e cantavam:
– Ei, ei, ei, Nelson Carneiro é o nosso rei! (A TFP era monarquista.)
Os pupilos de Plínio sumiram da praça. Esqueceram o brasão com o leão rampante, que foi levado como troféu para o interior da escola.
– Vamos entronizá-lo na sala Ademar de Barros.
Estranhei. Ademar de Barros, político antigo, conservador, e, com fama de “rouba mas faz”, era abominado pelos estudantes. Como, então, haveria uma sala na faculdade com seu nome?
Entrei com os estudantes. Eles levaram o troféu ao banheiro. Era a “sala” Ademar de Barros. E colocaram o brasão no trono, na privada. Estava “entronizado”.
Após a morte de Plínio, em 1995, a TFP se fracionou, com disputas internas, judiciais, acusações de desvios de dinheiro e outras mazelas, como noticiou o Consultor Jurídico.
Deus me livre, será que o demônio venceu?
O autor, Júlio Cezar Garcia, é jornalista e um dos fundadores do Jornal da Segunda
196 – Atualizado às 20h11