A560 – CRÔNICA – Cabia um mundo inteiro naquele abraço amigo que recebi de Caio

Por: Cláudio Messias
Esse espaço virtual mediado por big tech tem sido meu ponto de refúgio para, infelizmente, mais postagens de registro de passagens de amigos de outrora do que para o que seja a proposta do blog em si.
O que me traz a esse texto, hoje, é a importância de uma amizade infinita.
Sim, os amigos são perecíveis; nascem, vivem e morrem. Mas a amizade que deles emerge, essa é eterna. Bom amigo, saberemos, é aquele que depois de sua partida eterna é lembrado pela contribuição que deu nas vidas de outrens, sem pretendê-lo ser.
Domingo, 9 de março, provoco meu amigo Márcio Grilli, santista que horas depois secaria o meu Corinthians pela semi-final do Paulistão 2025. Via whatsapp vem, primeiro, a notícia, antes das costumeiras provocações futebolísticas. Caião se foi, informou Marcião, companheiro de história no rádio regional.
Caio é o apelido de Carlos Alberto de Oliveira (foto abaixo), operador de som de emissoras de rádio e de boates como O Porão. E não era qualquer operador de mesas de som. Era um dos melhores, senão o melhor que a história do rádio e da vida noturna de Assis já teve, por seu conhecimento técnico e dos movimentos culturais por trás de sucessos das paradas.
Iniciei como estagiário na Cultura AM/FM nos meses finais de 1985, na equipe de esportes de Chico de Assis, na Cultura AM. Caio estava chegando à emissora da família Camargo, na rua Capitão Francisco Rodrigues Garcia.
Substituiria Maurílio Siqueira (outro competente conhecedor da engenharia e da arquitetura de funcionamento do complexo sistema de radiodifusão que coloca uma emissora no ar) na técnica de gravação. Logo, gravava anúncios comerciais, programas de fim de semana e vinhetas.
Um ano depois, em 1986, fui contratado para ser sonoplasta na Cultura AM/FM. Passava horas no estúdio de gravação conversando com Caio e o observando na forma de trabalhar. Tal qual comunicadores como Bentinho e Luiz Otávio Lavagnoli, Caio tinha uma capital cultural muito sólido, forte. Rolavam assuntos de todas as pautas com ele, e sempre com uma posição firme. Caio era mais um contra-hegemônico, questionador da ordem dominante.
Foi coadjuvando uma prosa na sala de gravação que ouvi Caio responder a Alves Barreto (outro sonoplasta de repertório respeitado) que a banda RPM jamais poderia ser considerada a banda precursora do pop rock no Brasil nos anos 1980. Era a banda Blitz, do vocalista Evandro Mesquita, por sua proposta de conter letras com críticas sociais em forma de ironia e uma estética com identidade advinda dos movimentos sociais da música nacional. Uma aula de estética.
Trabalhei os meses iniciais no grupo Cultura como sonoplasta e técnico de externa em jogos de futebol do VOCEM. Mas, com a gravidez de Maria Sílvia Gomes, a Silvinha, que era locutora do FM e redatora de boletins informativos, tive Caio como mediador em um encaminhamento que foi decisivo na minha trajetória profissional, e mesmo até hoje, na vida acadêmica na qual estou inserido desde 2008.
Caio fazia a decupagem, ou seja, a edição com cortes de trechos de reportagens levadas por Alves Barreto, Chico de Assis, Celso Camilo Costa e Carlos Perandré a partir da orientação do editor Valdir Pichelli, para o Cultura Notícias, no ar a partir de meio-dia, sob a voz de Luiz Luz. Era início de 1987 e, sabendo que Silvinha, em gravidez de risco, sairia afastada por licença médica, Caio perguntou por que eu não assumiria a redação dos boletins informativos.
Hoje sei, ali havia um reconhecimento recíproco. Eu, na minha admiração pelo cara inteligente, sério, extremamente profissional, que era Caio. E ele, com reconhecimento a algum valor profissional sobre aquele quase adolescente de 16 anos de idade, tão ranzinza quanto ele.
Eduardo Camargo Neto, o Camarguinho, diretor artístico e de jornalismo, me chamou à sala da diretoria, onde estavam ‘seo’ Toninho e dona Anamélia, juntamente com Rosa Amábile Pólo, a Rosinha, secretária executiva. Era o anúncio da minha contratação como redator, para trabalhar com Valdir Pichelli, editor. Continuei sonoplasta na Cultura FM, mas saí da técnica externa no AM, para cumprir horário na redação.
Caio nunca falou nada, nem eu nunca perguntei. Mas, sei que a indicação de meu nome para o jornalismo saiu dele e não somente do simples fato de eu ter boa relação com a família Camargo e demais funcionários. Caio era uma referência unânime naquela empresa.
Com Caio, eu percorri alguns locais que, pela boca de meu pai, deveriam ser evitados: os bares. Começamos encerrando o expediente na lanchonete Luiz XV, em frente à Praça da Bandeira, onde eu comia aquela que definiria como melhor esfirra de carne que já comi na minha vida. Era a esposa de Jorge, dono, que fazia. Eu acompanhava Caio, Chico de Assis e José Carlos Domingos, o ‘Pé na Cova’, nas idas àquele bar ali pelas 18h00. Aprendi, perigosamente, a tomar o tal VV lá, com, eles, ou o vinho-e-vodka.
Foi com Caio que fui pela primeira vez a O Porão. Íamos às sextas, na hora do almoço, para ajustes de som da cabine, com Eugênio, e depois voltávamos à noite, com a casa aberta. Eu era aprendiz de DJ e observava, naquele espaço apertado da cabine, os trabalhos de Caio e Marcos Biondi.
Esse último era o DJ principal. Caio tocava a sequência após as românticas, ali por volta de 2h30 da madrugada. Começava com samba, passava para o forró e devolvia para Marcos Biondi encerrar.
Na cabine do Porão tinha uma bateria eletrônica. Não raro, a transição de uma faixa para outra feita por Marcos Biondi tinha o passo-da-batida feito por Caio. Resultado: quem estava na pista, dançando, sequer notava que uma música havia acabado e já entrado outra, tamanha era a sintonia entre os dois DJs e a tecnologia.
O acessório permanente na mão direita de Caio era o copo de vidro. Na rádio, com café ou chá feitos por dona Linda. A sala de gravação ficava exatamente ao lado da copa. Eu subia do primeiro para o segundo andar, ou seja, da redação/escritórios para os estudios, para tomar café, chá, água ou lanchar. E era comum Caio parar o que estava fazendo para, igualmente, encher seu copo americano com café, chá ou o que tivesse, pois à tarde rolava lanche com pão francês/mortadela/presunto e queijo e volta e meia tinha tubaína para tomar. Caio não bebia álcool trabalhando. Na rádio, pois no Porão a barwoman Marli repunha séries de copos com principalmente wisky.
Cada parada era uma oportunidade de prosa. E com um detalhe: Caio era extremamente fechado, ranzinza mesmo. Só conversava com pessoa de sua empatia. Assim, se tivesse alguém, da emissora ou de fora, com quem ele não tivesse abertura ali na copa, simplesmente não tinha interação para café ou lanche. Na redação da rádio, descia todos os dias para ler jornal impresso, e não tinha sorrisinho de canto de boca a ninguém.
São-paulino, Caio tinha um orgulho: a paixão pelo irmão Mário César de Oliveira, o Marinho. Goleiro do Vocem nos áureos tempos de 1980, no quase acesso, Marinho passou por diversos clube, até chegar exatamente ao São Paulo, na capital. No entanto, uma contusão séria, com fratura em uma das pernas, praticamente interrompeu a carreira do irmão de Caio. Foi uma das poucas, senão a única vez que vi Caio chorar copiosamente, ao contar sobre o ocorrido.
Caio e Marinho são, penso, essas bênçãos que a vida coloca em terra.
Convivi profissionalmente com os dois (cobri o Atlético Assisense nos anos 2004/2005/2006 como comentarista esportivo na Cultura AM, época em que Marinho foi diretor de futebol da agremiação) e sempre admirei a forma respeitosa com que um sempre reconheceu os valores e mesmo as fragilidades do outro.
Os dois irmãos, recentemente, já tinham passado por uma fase delicada, com a morte do pai seguida, horas depois, da passagem da mãe viúva. Pai sepultado em um dia, mãe sepultada na mesma semana.
Nas minhas idas e vindas de grupos de comunicação em Assis, trabalhei com Caio pela última vez em 1994. Estava editor na Cultura AM, função que também exerci, pela primeira vez, tenho certeza, por influência daquele meu amigo, lá em 1987, quando da demissão de Valdir Pichelli. Sim, da noite para o dia o editor foi demitido no início de uma certa manhã (desentendeu-se editorialmente com a diretoria da emissora) e eu que chegava para fazer os boletins informativos me vi na cilada de colocar um radiojornal no ar, pois Pichelli, demitido, simplesmente foi embora. Quem segurou as pontos comigo? Caio.
Eu estava no Oeste Notícias, sucursal de Assis, quando soube da demissão de Caio da rádio. Já era finais dos anos 1990, Caio já tinha quase passados 40 anos de idade. O Porão já tinha fechado e reaberto sob nova direção e, o que é capital nessa história toda, o mundo do trabalho da comunicação já era impactado pela primeira revolução digital. Saíam os vinis (LPs) e as fitas magnéticas (K-7, rolo de Akay e cartuchos) e entravam os CDs e formatos MIDI (digital audio tape, resumindo).
Caio era um exímio operador de áudio, mas no formato analógico. Sei até hoje emendar uma fita k-7 arrebentada, pelo que aprendi com ele. Fazer remix de músicas usando fita magnética de k-7, com efeitos como medley, etc, também sei fazer tendo aprendido com ele, recurso que editores de audiovisual fazem automaticamente em segundos. Detalhe: editar fita magnética k-7 manualmente e usando como emenda fita “durex” adesiva transparente.
Fui e ainda sou amigo de parte da família Camargo até hoje e já ouvi ambas as versões para a demissão de Caio do denominado, na época, Grupo Cultura de Comunicação, que tinha as rádios AM e FM. O que Caio estava fazendo, de gravar conteúdos musicais a partir de encomendas, era feito usando a estrutura da rádio, mas sem prejudicar equipamentos ou as demandas de trabalho.
Podemos eticamente discutir isso, na prática, pois entraremos na questão de direitos autorais fiscalizados por políticas públicas, mas, sem dúvida, Caio não era o único a fazer e pessoas que encomendavam aquele serviço tinham trânsito dentro das instalações da emissora. Eis a linha tênue de um discussão que permeia do politicamente correto ao politicamente incorreto, pois sobreviver de piso salarial de radialismo, mesmo em um estado como São Paulo, é desafiador. Não por acaso todos fazíamos nossos ‘freelas’ para tirar um dinheiro extra, cada qual na sua experiência.
É fato, pois, que Caio foi demitido em uma época de sua vida em que o casamento com Regina havia igualmente acabado e os “free” no Porão haviam esgotado. Outro fator que, tenho certeza, para o emocional dele, no lado profissional, teve peso a ser considerado está no fato de logo em seguida à sua saída a Cultura AM/FM trocar o insalubre espaço do prédio da Capitão Francisco Rodrigues Garcia e, enfim, ocupado o andar praticamente inteiro do prédio onde atualmente está a Cultura, na Benjamin Constant. Quando enfim havia equipamentos de qualidade e estúdio profissional para trabalhar, Caio foi demitido.
Com a demissão do meio rádio nosso amigo Caio entrou em um ciclo comum na vida de profissionais no mundo do trabalho da comunicação.
Muitos, como ele, foram engolidos pelas denominadas tecnologias digitais de informação e comunicação, e com o agravante de estarem no ângulo decrescente do pêndulo da vida, na faixa dos 40 para os 50 anos de idade. Sabia muito de rádio, mas era um migrante digital, cuja vaga foi engolida por ávidos nativos digitais.
Caio passou os últimos anos desenvolvendo trabalho informal. Ou seja, pequenos bicos, sem renda formal. Locais comuns em que o reencontrava para prosas sempre muito rápidas, eram o Bar da Ângela, na André Perine, e na padaria Pão da Vida, na vila Operária.
Esse meu amigo de quem recordo com emoção pesada, pesadíssima, me deu um abraço forte lá na padaria de Ivo, na VO, quando perguntou pra mim, enquanto eu buscava pão ao levar meus filhos para a Escola Sesi, se era verdade que eu tinha sido aprovado no concorrido mestrado em Ciências da Comunicação na USP. Ao que respondi que sim, ele saiu da tradicional bicicleta, sua companheira de labuta, e veio me dar um abraço, naquele início de 2008.
Se tem, pois, uma lembrança que guardo nisso tudo que relato, em partes, de minha vivência com Carlos Alberto de Oliveira, aquele abraço é desses que definimos como “cabe um mundo inteiro dentro desse abraço”. Tem muito de Caio na minha trajetória de comunicador e, agora, comunicólogo que forma comunicadores e comunicadoras sociais. E ele sabia disso quando me deu o abraço no marco de minha vida que foi entrar para a docência no ensino superior público.
Caio viverá, sempre, na forma de amizade infinita que sobrepõe a essa passagem tão rápida chamada vida.
O autor, Cláudio Messias, é professor universitário, historiador, é mestre e doutor em Ciências da Comunicação pela ECA/USP.
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Márcio Bainho Lula Grilli

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