Por: Niva Miguel
Em sessão solene da Câmara Municipal de Assis, nesta quarta-feira, dia 22 de novembro, às 19 horas, Benedito Francisco de Souza, o ‘Pai Obá’, receberá o Diploma de Mérito Zumbi dos Palmares de 2023, outorgado pelo “Zimbauê, Instituto do Negro de Assis”, em comemoração ao dia da Consciência Negra.
HISTÓRIA – Naquela quinta-feira, 24 de julho, de 1952, em Maracaí, interior paulista, dona Benedita Mota de Souza, mulher negra e baiana da cidade de Cansanção, foi acordada pelo seu mentor espiritual. Por isso, levantou mais cedo do que de costume. Foi até a sua filha e viu que ela ainda dormia tranquilamente. Então, ela sorriu, fechou a porta e se retirou.
Já no seu canto, ela começou a orar e sentiu a presença de forças espirituais ao seu redor. Então, ela orou com mais fervor ainda.
Aí, o seu mentor lhe disse:
“É chegada a hora, não se preocupe que tudo irá correr bem conforme o programado. Sua filha será mãe de um menino dessa vez. Essa criatura será um bom homem, fará caridade ajudando a quem a sua porta bater e levará com firmeza, onde quer que ele vá, as nossas histórias e tradições africanas.
Ele começará a trabalhar conosco desde a infância. Aqui no nosso mundo estamos em oração e estaremos com ele em toda a sua caminhada. Por isso, fique tranquila, disse o mentor.”
Emocionada, dona Benedita deixou a flor do seu sorriso se abrir, agradeceu e, depois, chorou copiosamente. E foi assim que a dona Maria Olivia de Souza teve o seu terceiro filho que ganhou o nome de Benedito Francisco de Souza. Antes ela já tinha duas meninas: Diva Teresa Teodoro de Souza e Edna Aparecida de Souza. Depois, vieram ainda José Francisco Teodoro e Marli Donizete de Souza.
EM ASSIS – Desde a sua infância, ‘Baianinho’, apelido que ganhou nesse período, se diferenciava das demais crianças da sua idade pela sua disposição e, principalmente, pela sua determinação. Ia pra escola normalmente, brincava, às vezes, cuidava dos irmãos e ajudava também nos afazeres domésticos.
Mas, isso tudo começou a mudar quando ele ganhou de presente um casal de galo índio, galo de briga, muito comum naquela época.
A partir daí, ele começou uma criação de galinhas. Com isso, era possível vendê-las e trocá-las por outras coisas como: bicicletas, cabritos, cavalos…
Entretanto, a vida familiar não era das melhores, principalmente a relação com o seu pai João Francisco Teodoro, que carregava uma certa incompreensão sobre a vida e a maneira de como educar os filhos. Ele não deixava que os mesmos brincassem na rua, não queria que tivessem nem amigos e por aí vai.
Perto de completar oito anos de idade, um vizinho amigo o convidou para o seu aniversário.
Sabendo que o pai não o deixaria ir, Baianinho teve a seguinte ideia: convidou o irmão para ir junto e achou que, se colocassem dois bonecos na cama, poderiam enganar o pai, que acharia que estavam dormindo.
Coisa de criança, né!
Claro, não deu certo.
Quando voltaram, o pai estava esperando os dois na porta do quarto, daquele jeito.
A bronca foi forte.
Seu João soltou os cachorros pra cima dos filhos e, pior, ordenou que eles colocassem o dedo na garganta para vomitar o que haviam comido. O irmão vomitou, mas ele não. O pai irado, resolveu bater, mesmo assim, ele não vomitava e ainda o desafiava dizendo:
“O senhor está satisfeito agora?”
Segundo Baianinho, esse foi o dia mais triste da sua vida!
Diante de tudo isso, ele não contava nada pra mãe.
Não queria criar mais confusão na casa e nem magoar ninguém, sofria calado. Mas tomou uma decisão a partir desse dia. Mesmo sem saber, algo em seus pensamentos dizia que era hora de partir.
Sabendo que um conhecido iria para São Paulo, ele o procurou e disse que queria ir junto. Atônito, o ouvinte não acreditou no que ouviu, pois, afinal, era uma criança dizendo aquilo.
Aí, a “criança” lhe disse que tinha dinheiro suficiente para sobreviver na capital por um tempo, até conseguir um trabalho.
Diante de tais argumentos, o amigo foi convencido e marcaram o dia da partida.
De malas prontas, Baianinho foi até a casa da sua amiga vizinha e pediu a ela para escrever o seguinte bilhete:
“Mãe, estou indo embora. Não quero que a senhora fique preocupada, triste e nem chore por mim. Um dia eu vou voltar para buscar a senhora e levá-la comigo onde eu estiver.”
SÃO PAULO – Na capital, ele foi morar no bairro Santo Amaro, em um cortiço chamado “Vila das Belezas”. Pagou três meses de aluguel adiantado e saiu à procura de emprego. Caminhando pela redondeza, ele viu um armazém e, ao mesmo tempo, algo lhe dizia em pensamento: ‘vá até lá e peça trabalho’. Foi o que ele fez.
Conversou com o dono e estava empregado.
Mal sabia ele quem era e qual a importância que teria o proprietário na sua vida dali para a frente. O menino cumpria todas as tarefas com esmero, tanto que ganhou a confiança do seu Massal, o patrão.
A confiança era tanta que Baianinho passou a levar e buscar o filho do seu Massal para a escola.
Um belo dia, ele chegou adiantado para pegar o menino, como havia tempo, ele resolveu fazer o almoço, fez lanche pro menino levar, e lavou as louças sujas.
Quando seu Massal viu aquilo tudo, quis saber onde ele havia aprendido.
Disse que foi com a sua família em Maracaí, que sempre cuidou da casa, aprendeu a cozinhar, a lavar e a passar, e que carrega os conselhos que sua mãe sempre lhe dizia:
“Nunca coloque as mãos nas coisas dos outros. Se precisar, peça, se um não der o outro dará. Nunca mexa com drogas e sempre ande direito que é pra Deus lhe ajudar.”
Depois disso, a confiança do seu Massal aumentou mais ainda. Tanto que, alguns dias depois, o patrão lhe chamou e perguntou onde ele morava e foram até o cortiço. Lá chegando, seu Massal procurou pela dona do local, que era a dona Maria, e travaram o seguinte diálogo:
“Eu sou o senhor Massal e esse menino trabalha para mim, eu quero saber quanto ele está devendo aqui que eu vou pagar tudo.”
“Ele não deve nada, pelo contrário, pagou três meses adiantado. Aliás, esse menino é muito esperto. É uma boa criança.”, respondeu ela.
“Pois, de hoje em diante ele vai morar com a minha família.”, falou Massal.
Tomada pela alegria, dona Maria sorriu, devolveu os três meses de aluguel como forma de ajudar o menino e desejou boa sorte.
Na verdade, seu Massal havia alugado uma casa para ele na Alameda Santo Amaro.
Baianinho não acreditou em nada do que estava acontecendo e não tinha palavras para agradecer. Então, ele caiu no choro, tamanha era a sua alegria.
Acontece que o seu Massal era candomblecista e ogan na “Casa Ilê de Oxalá” e o levou para assistir um trabalho, o que mudaria por completo a sua vida.
Assim que Baianinho pisou no terreiro pela primeira vez, sentiu uma energia muito forte que ele não sabia explicar o que era.
Sentiu como se tivesse desmaiado e acordado.
Apavorado, pensou em ir embora.
No que se levantou, caiu de novo, agora fora de si.
Quando acordou, havia algumas pessoas ao seu redor lhe explicando o que havia acontecido.
Nesse momento, ele se lembrou que sua avó dona Benedita, lá na Bahia, “tocava um barracão”, tinha um terreiro e que sua mãe cresceu nesse ambiente sempre cambonando, ajudando a mãe nos trabalhos espirituais.
Portanto, era algo que membros da família nasciam com essa missão.
Daí em diante, Baianinho passou a frequentar o terreiro e a se desenvolver espiritualmente.
Com 14 anos e parecendo um homem formado, era hora de cumprir a promessa de ir buscar a mãe, como havia prometido no bilhete deixado quando partiu.
Assim foi feito!
Além da mãe, que já morava em Assis, ele também levou para São Paulo dois irmãos e um primo.
O pai fez birra e não quis ir.
Enquanto isso, ele se desenvolvia nas obrigações do terreiro.
Foram sete anos de trabalhos ininterruptos. Ele completou todas as lições que um médium no Candomblé tem que fazer.
A partir daí, o seu Benedito Francisco de Souza, o Baianinho, passou a ser chamado e conhecido como “Pai Obá”.
Esse arquétipo quer dizer: força e energia, que nos mostra que estamos prontos para vencer qualquer batalha. Esse título é dado para os médiuns que cuidaram dos novatos com primor, dando comida, banhos de ervas, ensinando rezas e tudo que é necessário para a evolução espiritual dos mesmos. Só a partir daí, o médium é considerado “Pai de Santo”, e pode tocar o seu barracão, abrir um terreiro.
Ah, nesse período todo, Baianinho, agora ‘Pai Obá’, não esqueceu de seu pai, que ora morava com ele em São Paulo, ora voltava para Assis.
Como a vida é cheia de reviravoltas, no final da vida, seu João foi amparado pelo filho e morreu praticamente em seus braços de olhos abertos olhando para ele, como que pedindo desculpas, perdão, sabe-se lá, hein?
Detalhe, os olhos do falecido não fecharam e não havia quem fizesse tal coisa.
Alguém, então, pediu que ele colocasse as mãos nos olhos do pai.
Assim ele fez. Quando as tirou, estavam fechados.
Depois de 37 anos, o agora Pai Obá, está morando novamente em Assis, no bairro Parque Universitário.
E foi lá que ele abriu o seu barracão, terreiro “Ilê Axé Obá e Sultão das Matas”, para dar continuidade ao seu trabalho.
Para quem não sabe, o Candomblé carrega em si vários elementos e histórias sobre o povo negro e sua origem com o continente africano.
Conhecer o Candomblé, um barracão, terreiro e seus fundamentos, significa conhecer as nações africanas, a história sobre a criação do mundo na visão candomblecista, a divisão do corpo, conhecer palavras em Iorubá, temperos, comidas, enfim.
Um terreiro é um espaço riquíssimo em cultura afro-brasileira.
Entretanto, a falta de conhecimento sobre a religião ainda é um dos pilares que mantêm as ocorrências de práticas intolerantes. As religiões afro-brasileiras ou religiões de matriz africana, de culto aos Orixás, representam, para nós negros e negras, a existência de um povo e uma luta histórica de resistência.
Além disso, Pai Obá é chamado constantemente para trabalhos espirituais e dar palestras em várias cidades dos estados de São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Espírito Santo…
É esse o trabalho que Pai Obá está nos mostrando aqui em Assis, há quase 40 anos.
Ah, Pai Obá está, há 63 anos, se dedicando ao Candomblé e, isso, é coisa de um negro que veio pra ser forte, guerreiro e vencer batalhas.
Por conta de tudo isso, esse é o nosso homenageado em 2023, com méritos.
Nós, da Comunidade Negra de Assis, nos curvamos e agradecemos pelas significativas contribuições que nos enchem de orgulho.
O seun pupo, em Iorubá, ou…
Muito obrigado!
Niva Miguel é jornalista e mestre em Educação.
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