279 – FALA, JÚLIO GARCIA – Sobre prédios e monumentos

Quando cheguei em São José do Rio Preto, naquele 8 de dezembro de 1997, ao ver pela primeira vez a Represa Municipal e a muralha de prédios ao fundo, vivi a mesma sensação de outra mudança de cidade, 40 anos antes.

Interessante como sentimentos semelhantes podem ocorrer em situações distintas. Acho que tinha 12 anos quando minha família se mudou de Palmital, com 20 mil habitantes, para Assis, com 80 mil.

Achei a nova cidade maravilhosa.Imensa. Toda asfaltada. No centro, os imponentes hotéis Vieira Dias e Santa Rosa, com quatro ou cinco andares, pareciam gigantescos. Elevavam-se acima da torre da Catedral. E quatro ginásios, um deles com colegial.

Em Palmital, ainda havia paralelepípedos nas ruas. Meia dúzia de sobrados, nada de arranha-céu. Só um ginásio. Nenhum curso colegial. Assis era uma espécie de capital regional, cercada pelas acanhadas Cândido Mota, Palmital, Florínea, Tarumã, Maracaí, Platina, Paraguaçu Paulista, Pedrinhas, Cruzália e outras que a distância e o tempo esfumaçaram na memória.
Já escrevi que a gente é do lugar onde passa a adolescência. Por isso, digo que sou de Assis.

Nossa mudança para Assis havia ocorrido em um mês de julho. Não havia vaga no Instituto de Educação na metade do ano. Alunos da região estudavam ali e garantiam vaga meses antes do início do ano letivo.

Minha avó, pobre de estudo, mas convicta de certos direitos mínimos, levou-me ao Instituto para falar com a diretora. Chamava-se Maria Emery Pires Soares. Era uma mulher corpulenta, séria e intimidadora. A avó falou sobre nossa mudança. Não queria ver o neto dela perder o ano.

A diretora desfez-se da aparência grave. Delicadamente, desculpou-se e nos convenceu de que nada havia a fazer. Não havia onde acomodar mais um aluno.

A avó pregou o olhar no chão. Fez-se um breve silêncio. Como se estivesse só, balbuciou a frase que ainda hoje reluz na escuridão de minhas insônias.

-É triste um homem trabalhar para o Estado e não ter, do Estado, um lugar para o filho estudar.
Dona Emery pareceu ter levado um choque.

– O pai do menino é funcionário do Estado?

– Do Centro de Saúde.

A diretora passou a mão nos cabelos do adolescente e tomou as mãos da avó.

– Traga os documentos dele amanhã mesmo. Filho de funcionário do Estado não pode ficar sem vaga no Estado. Nem que eu tenha de dar a minha cadeira a ele.

Muitos anos depois, na rua Pinheiros, em São Paulo, eu saía de uma pizzaria e vi, na outra calçada, uma mulher com um cãozinho na corrente. Tomava a brisa da noite, em frente ao prédio em que morava. Atravessei a rua e dei-lhe um beijo na testa. Era ela. Estava aposentada.

Hoje, quando tateio na neblina da memória minhas lembranças de Assis, os hotéis Vieira Dias e Santa Rosa ficam pequenos perto de um monumento que só eu enxergo. Chama-se Maria Emery.

fala, julio garcia

Júlio Cezar Garcia é jornalista e um dos fundadores do Jornal da Segunda

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