No ginásio, em Assis, a gente perguntava ao Rubão o que ele queria ser quando crescesse. Só para ouvir sempre a mesma resposta:
– Quero ser índio.
Ríamos com a sinceridade impossível. O amigo se chamava Rubens Beluzzo Brando, filho do doutor Newton Brando, o pediatra que me acudia em tempos de catapora e sarampo.
Voltei a encontrar Rubão em São Paulo. Frequentava a república dele, numa travessa da rua Pamplona. Na época, ele fazia medicina na USP. Em seguida, fez especialização em saúde pública em Botucatu.
Rubão não virou índio, mas transformou-se no primeiro médico a habitar a serra dos Surucucus, em Roraima. Foi pra lá pra cuidar da saúde dos índios Yanomami, dizimados por doenças de brancos.
Um dia, escreveu: “Estamos na aldeia Ayakanteri. Quatro crianças não me deixam escrever. Põem o dedo nos meus óculos, me enfiam gafanhotos na boca, procuram piolho na minha cabeça, puxam minha caneta. Como não falamos a mesma língua, é fogo. Eles conversam com a gente, falam, falam, falam.”
Era uma das muitas cartas que Rubão mandava para a mulher, René, em São Paulo, antes que ela fosse se juntar ao marido, com os dois filhos pequenos, naquele sertão da Amazônia.
Uma outra carta: “De manhã fui até Surucucu buscar um paciente e fiquei até há pouco com ele no hospital. O camarada levou uma bordunada no crânio que arrancou uma porção do periósteo (membrana que recobre os ossos). Seu adversário levou a pior: quatro bordunadas. Parece que arrancou o maxilar.”
Um dia, eu soube que o Rubão tinha morrido. Tinha ido de helicóptero concluir uma vacinação. O piloto tentava aterrissar em uma clareira de árvores queimadas, mas o aparelho enroscou em uns tocos a menos de dois metros do chão. Enquanto o piloto acelerava o motor na tentativa de aprumar a aeronave, Rubão ajudava amigos e mulheres a descer. Na vez dele, o helicóptero adernou e a hélice o atingiu.
Naquele dia, René escreveu: “Tem dois grilos fazendo dueto. O céu está estrelado como eu nem sabia que podia. Ganhei um beijo na nuca hoje de manhã e nunca mais vou ganhar outro.”
Era dezembro de 1982.
Espero que índios também entrem no céu. Porque, se forem para o inferno, o Rubão vai querer pular o muro.
Júlio Cezar Garcia é jornalista e um dos fundadores do Jornal da Segunda